Lourenço Braga, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas
lourencodossantospreirabraga@hotmail.com
Aproxima-se o 25 de setembro (hoje são 15) e faz-se em mim nostalgia que não consigo controlar. É que naquele dia, no distante ano da proclamação da República – ainda em pleno Império, portanto, mesmo decadente e bombardeado pelos políticos de então, por jornalistas e demais forças que se diziam progressistas e que exigiam nova configuração para o poder de comando deste canto do mundo – nasceu quem viria a ser, quase 56 anos depois e por mais de 40, o comandante com quem aprendi a segurança do caminho sustentada pela confiança nos valores éticos, morais e de crença que soube transmitir sem alardes, com exemplos, com gestos e com palavras que ainda me ressoam aos ouvidos como regras do dever-ser.
Baiano de boa índole, Lourenço, o pai, para aqui veio ainda criança e carregou consigo herança invejável de portugueses e de índios que lhe compunham a ancestralidade. Trabalhou desde cedo e com tenra idade viu-se obrigado a dirigir a própria vida por orfandade que o fez só.
Foi aluno da vida, mais que da escola que, no tempo de então, não incluía faculdades ou centros de ensino superior, mas que preparava para o depois.
Impossível dele falar sem a tanto juntar a professora normalista que conquistou pela insistência nas viagens no bonde de Bilhares, que fazia parada, não final, em frente ao “Isolamento Chapot Prevost”, próximo à casa de dona Maria Wanderley – ali onde hoje é a avenida Djalma Batista – irmã mais velha que cuidava da educação da também órfã Sebastiana, dedicada, meiga e estudiosa aluna da Escola Normal, hoje Instituto de Educação do Amazonas, tantas vezes elogiada por Adriano Jorge, Agnelo Bittencourt e outros professores com quem teve a primazia de estudar.
Foi tanto que Lourenço insistiu, no que não faz muito tempo já se denominou de “paquera”, que a jovem moça passou a esperar – provavelmente tal como ele, em sonhos que nem ousava revelar e que certamente guardava no mais íntimo de sua jovem esperança, ornado de beleza inigualável – o momento da viagem e, com as bençãos dos deuses do Amor, o tempo para o sorriso, inda que envergonhado e respeitoso, sempre.
Muitas as tardes em que sonharam juntos, em silêncio de cumplicidade não declarada, com Isis, com Vênus, que afinal, em dia qualquer, o depois saudoso bonde foi testemunha muda do encontro de almas que a carícia na mão, ainda ousada, fez selar e que acabou derramando frutos por mais de meio século, como até hoje.
Esse foi gesto que se repetiu, tarde por tarde, em mudez que só os corações rompiam com batimentos de entrega, até que, como lhe competia – e só a ele – Lourenço viu-se encorajado a falar com dona Maria, a irmã, dizendo de intenção inabalável de ir adiante, sem precisar proclamar o respeito comum do tempo de então. E autorizado passou a frequentar, em dia de semana preestabelecido e que não atrapalhasse os estudos da quase professora, a sala da casa onde Evaristo e Maria também conversavam.
Depois, professora normalista diplomada, Sebastiana foi trabalhar no lago do Janauacá, que não conhecia – pernambucana da Praia da Piedade para aqui vinda também criança – e ali ficou até que Lourenço, líder sindical, jornalista e político, fundador do Partido Trabalhista do Amazonas, o primeiro da espécie no Brasil, acabou por conseguir, junto ao Secretário de Ensino, amigo pessoal, a transferência de sua amada para Manaus, sem privilégio qualquer mas evidentemente livre dos carapanãs e dos piuns que tanto a maltratavam no lago, apesar do mosqueteiro (cobertura de filó posta sobre a cama ou a rede). E foi quando passaram a “noivar” em casa de dona Maria, como a chamou até o instante em que lhe foi prantear a partida no necrotério da Santa Casa, ali na Dez de Julho esquina da Ferreira Pena.
Em 22 de junho de 1935, convolaram núpcias – que era como se chamava, então, o ato do casamento – e, ao tempo em que se impuseram, e aceitaram, vida modesta e digna, construíram juntos exemplo de amor que resistiu a uma guerra mundial e que foi capaz de sobrepor-se às intempéries que derrotam os que não sabem amar.
De casamento que se encerrara com a morte de Isabel, primeira esposa, Lourenço levou para o tempo novo Altacir, Altamir e Altair, este que hoje se chamaria de especial, e Sebastiana a todos amou como filhos e encaminhou com a força de quem crê na educação como sustentáculo que se não abate. E foi com eles ao lado, na vida simples de professora e esposa de comandante, que recebeu e conduziu João, José, Maria Justina, Ana Maria, Robério e a mim, o do meio. Não sei, até hoje, de escusa qualquer, de nenhum deles, quanto ao amor na construção, na criação e na formação e de cada um de nós, e de todos.
Em 1986, também em setembro, Lourenço tombou de uma cadeira de embalo e estraçalhou a cabeça do fêmur, segundo disseram os médicos que aqui o atenderam e os que o receberam, para retirar o gesso que lhe provocava dor forte, em hospital de São Paulo.
Cirurgia realizada pelo melhor especialista de então, doutor Bellibond, com retorno ao quarto de tratamento intensivo pouco mais de 45 minutos depois, Lourenço estava, no dia seguinte, sentado na poltrona louvando, agradecendo a Deus, comemorando na fé o sucesso do tratamento. E foi quando o sistema renal, que jamais fora comprometido, passou a conhecer dificuldades que conduziram a necessário funcionamento mecânico, até exaurir-se, 97 anos depois de sua chegada aqui.
O que deixou em cada um de nós, filhos e netos, tetranetos até, é fonte da sabedoria, que só a ele e a Sebastiana pertencia, e crença no valor de tudo que ensinou.