Justiça tributária é possível mesmo sem reforma

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Samuel Hanan*

O novo governo tem transmitido à nação a ideia de que somente será possível alcançar justiça na questão dos impostos mediante uma ampla reforma tributária. Soa como verdadeiro, entretanto é um discurso simplista e que não resiste a uma análise um pouco mais profunda sobre o tema.

A verdade é que existem instrumentos legais para propiciar justiça tributária, reduzir o volume de impostos que onera sobremaneira as classes C, D e E e parte da classe B, e iniciar um processo de maior respeito aos brasileiros das regiões Norte e Nordeste sem, obrigatoriamente, realizar a reforma tributária. Se, de fato, tal reforma é necessária para corrigir antigas distorções, não é impeditivo para ações de efeito mais rápido para aliviar o peso de impostos e tributos no bolso dos brasileiros mais pobres. Esses instrumentos são portarias, decretos e leis ordinárias, dos quais o governo pode lançar mão imediatamente, sem necessidade de aprovação pelo Congresso.

Independentemente de qualquer alteração no arcabouço jurídico vigente seria possível, por exemplo, fazer a correção anual da tabela do Imposto de Renda Pessoa Física, cuja defasagem chega a 148%. Os efeitos dessa medida seriam de grande impacto positivo para a maioria da população. Os números oficiais provam isso. Hoje, quem tem remuneração mensal acima de R$ 1.903,98 é obrigado a pagar IR. Ou seja, a maioria. Em 2022, 90% dos brasileiros tiveram remuneração mensal média inferior a R$ 3.600,00 – R$ 3.900,00. No ano anterior, 68,6% dos trabalhadores com carteira assinada tiveram remuneração bruta entre um e dois salários mínimos, enquanto 36,4% dos trabalhadores receberam menos de um salário-mínimo (R$ 1.214,00) por mês. A parcela de quem recebeu até três salários-mínimos mensais (R$ 3.642,00) chegou a 74,9% dos trabalhadores.

Se fosse feita a simples correção da tabela, a isenção do IR alcançaria quem ganha até R$ 4.723,77 por mês, e não quem recebe até R$ 1.903,98, como ocorre hoje. Isto é, 90% dos brasileiros estariam isentos do Imposto de Renda se os governos respeitassem as leis e a Constituição Federal. Seria, portanto, um enorme projeto social de distribuição de renda.

Representaria, ademais, a eliminação de um distorção perversa porque, de acordo com a Secretaria da Receita Federal, 79,4% dos trabalhadores com carteira assinada e remuneração mensal bruta de até R$ 3.640,00 respondem por mais de 48% do total da arrecadação tributária brasileira. Temos, então, um retrato cruel: as classes C, D e E – menos favorecidas economicamente – sustentam o Tesouro.

Ao manter o IR sem correção, o governo na verdade está tributando inflação. E isso não é legítimo, pois inflação não é renda e, dessa forma, o cidadão é punido duas vezes: na compra de produtos básicos com preços mais elevados e, ao mesmo tempo, pagando mais tributos pela defasagem na tabela do IR. Tudo isso em contrariedade à Constituição, pela qual a tributação deve respeitar a capacidade economica do cidadão (Parágrafo 1°, do Art. 145, da CF/88) Não respeita, assim como imposto sobre inflação não consta da lista dos tributos de competência da União (art. 153). Além disso, a CF não permite exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça (art. 150, inciso I) e tampouco permite utilizar tributo como forma de confisco (art. 150, inciso IV).

Também sem necessidade de reforma tributária, União e Estados poderiam reduzir as alíquotas de impostos dos gêneros e produtos de primeira necessidade, cujos custos impactam fortemente os cidadãos das classes C, D e E. Hoje, a carga tributária sobre produtos de cama, mesa e banho é de 26% a 45%; sobre materiais básicos de construção é de 30% a 42%; sobre materiais de limpeza e higiene ultrapassa 30%; sobre materiais escolares está entre 36% e 45%; sobre vestuário básico é superior a 30%, e sobre alimentos é de mais de 28%. Um enorme peso no orçamento dos trabalhadores, fruto da incidência de tributos da União (PIS, COFINS e IPI) e dos estados (ICMS).

Atualmente, a tributação sobre o consumo representa de 43% a 46% do total da arrecadação tributária brasileira. É um castigo desmerecido para quem ganha menos e uma vergonha nacional, com a qual parecem não se importar os governantes.

Enquanto não é concluída uma reforma tributária ampla e simplificadora da vida dos contribuintes, processo que demanda aprovação pelo Congresso, (Emenda Constitucional) em tramitação presumivelmente demorada, essas duas medidas significariam um sensível e imediato alívio financeiro à população, especialmente a mais pobre.

A perda de arrecadação decorrente da correção da tabela do Imposto de Renda e da redução da carga tributária sobre o consumo de itens básicos não é empecilho porque poderia ser suficientemente compensada pela revisão administrativa dos gastos tributários da União. Se o Brasil reduzisse tais gastos do atual patamar de 4,3% do PIB nacional (ou R$ 485 bilhões/ ano) para algo em torno de 1,5% a 2% do PIB (de R$ 170 a R$ 225 bilhões/ano), a economia anual seria de R$ 260 bilhões.

Isso deveria ser acompanhado da revisão da destinação dos gastos tributários da União. Hoje, 63% do valor das renúncias fiscais – parte delas envolvendo tributos compartilhados com estados e municípios – são destinados a beneficiários do Sul e do Sudeste, as regiões mais desenvolvidas do país, em vez de servir para a correção das desigualdades regionais e sociais como, aliás, prevê a Constituição Federal nos artigos 3º, 43 e 165. O Brasil precisa atacar os privilégios e enterrar de vez a máxima “redução de custos, nem pensar”.

Tudo não seria favor algum nesse país que também não precisa que as chaves das caixas de bondades sejam entregues nas mãos daqueles que se apresentam com promessas milagrosas ou que se autodefinem como defensores dos pobres. O Brasil se ressente de mais verdades e mais respeito aos contribuintes e cidadãos. Eles merecem tratamento à altura dos impostos que pagam com sacrifício. Sem essas mudanças, permanecerá sempre atual a antiga frase do humorista, jornalista e dramaturgo Millôr Fernandes (1923-2012), de fina ironia: “Me arrancam tudo à força e depois me chamam de contribuinte”.

**Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br

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