Lourenço Braga, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas
lourencodossantospereirabraga@hotmail.com
Nestes dias, por motivos que escapam à minha compreensão, muito mais à convicção que formei ao longo de três quartos de século, pus-me a pensar no valor do silêncio, sentimento multiforme que só os racionais conhecem e que nem sempre comandam ou desejam. E silenciosamente fui invadindo a vida, história que dela posso contar, os acertos e os erros, os enganos e as ilusões, os gritos gritados na juventude do peito que jamais envelhece e os silenciados tantas vezes por amor, pela crença na vida, pela força da fé, outras muitas por instinto de sobrevivência.
Olhei hoje para um homem humilde preso a muletas que, se não o deixavam disputar corridas que talvez antes empreendera, a ele lhe davam a condição de andante, ainda que privado da liberdade de caminhar livremente por calçadas esburacadas, maltratadas pelo descaso histórico de quem as devia conservar. Externamente o silêncio havia, somente quebrado por qualquer suspiro, repetido em verdade a cada desnível do piso que seus pés talvez nem sentissem, mas que o instrumento – que para muitos não passa de obra de arte manufaturada, com os defeitos que a própria madeira pode oferecer – enfrentavam com a galhardia de quem quer ir adiante.
Parei o carro para ver sua coragem, crente de que não era essa a forma que o orgulhava de demonstrá-la, e me pus a imaginar que a indiferença dos que por ele passavam – muitos que até o evitavam para que nenhum pedido fizesse – e tentei descobrir, quase em invasão proibida, o que lhe poderia ir à alma, no silêncio eloquente de quem é obrigado a calar. Dor? Certamente, mas era sua e aos outros nem deveria interessar porque não saberiam compreender, eis que as muletas só a ele pertenciam. Adiantei-me com o carro e ao chegar perto indaguei se o poderia ajudar, recebendo de pronto um sorriso resignado de agradecimento. Foi então que me dei conta do silêncio que se impunha, obediente à vida.
É assim que se dá com os que vivem a ilusão do amor – da paixão, talvez – e que a ele se entregam com força espiritual, dividindo com o sonho o desejo de ser e de crer. Não há caminhos outros, então, nem calçadas a consertar, nem desníveis a superar, e a alegria que se faz contentamento orna-se de silenciosa vontade de eternidade. A cada amanhecer há um sol de esperança e o desejo do calor de ser amado faz-se crença.
Também aí há silêncio, porque não há gestos, nem palavras, nem modos, nem nada capaz de exprimir com exatidão o poder da luz que guarda a quietude de quem ama.
Amar é, certamente, caminhar sem muletas ou correr com elas em busca da felicidade que constitui, de verdade, o silêncio maior do mais íntimo de cada um de nós.
Estou, portanto, a tentar dizer que o silêncio e o amor são armas humanas de quem crê no depois.
E fico a pensar como, nos cantos do mundo onde o silêncio é invadido pelo horror da bomba, do míssil, da bala, enfim, possa ser possível falar de amor. Penso que ao quebrar-se o silêncio da vida, mesmo que a luz única que então se faça seja a do desespero da morte, o Homem perde, querendo ou sendo obrigado pela estupidez do poder, o direito ao silêncio de amar.
Acredito que assim se dá, igualmente, com os que são compelidos a calar, mesmo quando não sejam eficazes as filas dos SUS da vida ou quando, no interior de cada um, possa brotar a certeza de que o silêncio é dever, obrigação de quem quer ir adiante.
Há bombas que geram silêncio, depois de destruir. Há as que fazem brotar lágrimas de incompreensão, as silenciosas que agridem a ilusão de quem ama, as que somente cada um de nós, na caminhada da vida, conhece. Mas todos, invariavelmente, somos por elas vitimados e muitos são os que guardam o silêncio, pelo menos enquanto podem pensar.
Silencio!