Conclamação urgente por um Brasil mais justo

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Samuel Hanan*
                Na primeira semana de abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, acabar com a prisão especial para condenados com diploma de curso superior. A decisão merece aplauso, mas o que os 11 ministros fizeram foi cumprir o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 que prevê isonomia no tratamento de todos os cidadãos brasileiros. Corrigiu-se, com isso, uma antiga e grave distorção, discriminatória e causadora de desigualdades, estabelecida pelo artigo 295 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1961.
                Uma pena que a decisão do STF, por força da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que motivou o julgamento, tenha se limitado ao inciso VII do decreto-lei mencionado, justamente o único que trata dos cidadãos comuns. Todos os privilégios garantidos pelos demais incisos do artigo foram mantidos intactos. É óbvio que a revogação de uma parte ínfima do decreto-lei não terá o condão de cessar a violação do princípio constitucional da isonomia. A discriminação em relação a outros cidadãos permanecerá, pois continuará em vigor um ato legal que promove desigualdade. Perdeu-se uma oportunidade de ouro!
                Nesta nação de privilégios e impunidade, o ideal seria que, na esteira da faxina pontual feita pelo Judiciário nesse julgamento, fossem revogados também todos os demais artigos do decreto-lei em questão, que trata especificamente de prisão especial. Melhor ainda seria a revisão dos artigos de lei que regem o foro privilegiado, sobretudo os que passaram a vigorar depois da Constituição Federal de 1988. Hoje com cerca de 55.000 pessoas beneficiadas pelo foro por prerrogativa de função, o instituto banalizou-se a ponto de se tornar um verdadeiro manto de impunidade. Nasceu na Monarquia, perpetuou-se na República, e hoje parece que o Brasil retrocedeu e possui 55.000 monarcas.
                Numa análise mais profunda, talvez se assemelhe até ao Brasil Colônia, quando o rei de Portugal criou as capitanias hereditárias, dividindo nosso território em 14 quinhões distribuídos a donatários com amplos poderes e uma única obrigação: pagar o dízimo à Coroa. Durou pouco. A iniciativa do rei foi esfacelada pela incompetência, arrogância e autoritarismo exacerbado dos donatários, e pelos maus-tratos impingidos diariamente aos vassalos, o sofrido povo brasileiro.
                Tantos séculos depois a distinção entre os cidadãos brasileiros ainda permanece. A isonomia existe apenas na letra fria da Constituição, muito longe da realidade cotidiana das pessoas. Os brasileiros cumpridores das obrigações legais sentem-se, cada vez mais, reduzidos a meros pagadores de tributos, já sem forças para questionar os detentores do poder e para reclamar dos péssimos serviços públicos oferecidos em áreas fundamentais como saúde, educação, habitação e segurança. O cidadão paga muito e recebe quase nada em troca.
                Há um nítido abismo no país, como marco absoluto da distinção de classe dos brasileiros. Em uma ponta, o poder concedente – integrado pelas autoridades do Três Poderes constituídos – e, na outra, o poder suplicante – representado por uma imensa maioria cheia de carências e sem privilégio algum. Todos regidos pelos mesmos princípios constitucionais.
                A Lei Maior contempla os princípios da capacidade contributiva, da legalidade, da anterioridade, da impessoalidade, da irretroatividade, da anualidade e da isonomia. Estão todos gravados no papel, muitos ainda à espera de efetiva aplicação universal para cada um dos cidadãos brasileiros. Não é de hoje que se apontam tópicos constitucionais que precisam ganhar efetividade, especialmente por meio de leis específicas capazes de afastar a pluralidade de interpretações que trazem insegurança jurídica e enfraquecem sempre o cidadão comum.
                Um bom exemplo de como o Brasil penaliza os cidadãos mais pobres é a questão da tabela de imposto de renda da pessoa física. Por conta de longo período sem fazer a correção anual do IR em percentual correspondente à inflação do ano anterior, a defasagem na tabela do IR já atinge 147%, segundo estudo do Sindifisco. Trocando em miúdos, a isenção que hoje alcança quem ganha até R$ 1.903,98 por mês deveria beneficiar quem recebe até R$ 4.702,83 por mês. Se a defasagem fosse zerada, 93% dos brasileiros estariam isentos do imposto de renda.
                Não seria nenhum favor porque é um direito do povo brasileiro. Inflação não é renda e, portanto, o cidadão não pode ser tributado como se assim fosse. Isso é ignorado pelos governantes e o brasileiro comum é penalizado duplamente: primeiro quando encontra mais caros os produtos na padaria, no mercado e na farmácia, e depois pela taxação do imposto de renda quando deveria, por direito, ser  isento. Para mudar essa triste realidade basta seguir a Constituição.
                O artigo 152 da CF/88 não enumera o imposto inflacionário como imposto da União. Além disso, o artigo 150 estabelece que a União não poderá exigir ou aumentar impostos sem lei que o estabeleça, mas é o que ocorre hoje pois os brasileiros estão pagando imposto de renda sobre a diferença de remuneração entre R$ 1.903,00 e R$ 4.702,83/mês. Ora, se não está previsto na Constituição, não é tributo e, sim, confisco.
                Eis aí um bom caminho para se implantar o maior projeto social do Brasil. A correção anual do IR até o nível da inflação acumulada atingiria mais de 93% da população nacional. Falta a vontade política.
                Falta também sensibilidade. Hoje o brasileiro recolhe em tributos o equivalente à remuneração de 153 dias de trabalho no ano. Em outras palavras, trabalha cinco meses do ano para sustentar a máquina pública. Paga mais do que os cidadãos dos Estados Unidos, do Japão, da China, da Coreia do Sul e da média dos países da América do Sul. Basta lembrar que o Brasil tem a 13ª maior carga tributária do planeta.
                Paradoxalmente, o Estado entrega pouco ao cidadão. Para onde se olha há carências gritantes. A sensação de insegurança só aumenta. Em 2022, o Brasil teve 40.800 mortes violentas, grande parte delas provocada por motivos fúteis, brigas de rua, de trânsito, ou como desfecho do roubo de um celular, de uma corrente de ouro ou de um par de tênis. Lamentavelmente, já somos o 8º país mais violento do mundo, segundo ranking de 2021 do UNODC (Escritório das Nações Unidas).
                Na educação pública, amargamos desempenho pífio. No ranking PISA, o Brasil flutua entra a 58ª e 60ª posição em leitura, entre a 72ª e a 74ª colocação em matemática, e entre a 66ª e a 68ª classificação em ciências.  Enquanto isso, as escolas particulares – onde estuda a elite – comemora a 5ª posição mundial. A discrepância é colossal.
                Vivemos a nítida falência das instituições públicas. Somos hoje um país carcomido pela corrupção endêmica, sistêmica e sindrômica, que suga os cofres públicos e desanima o cidadão de bem, abatido pela sensação de impunidade. A Operação Lava-Jato escancarou esse grave problema nacional, ainda que falhas e incorreções processuais tenham levado, depois, à anulação da condenação de agentes públicos. O desfecho jurídico não apaga os malfeitos e tampouco apaga a realidade. Levantamento publicado em janeiro de 2023 pela Transparência Internacional mostra que 93 países têm o setor público mais íntegro que o do Brasil. Essa realidade é insustentável.
                Somente um grande concerto nacional, com a mobilização da sociedade civil em conjunto com os poderes constituídos pode transformar este país de privilégios e impunidade em uma nação mais justo e menos desigual. Eis uma conclamação necessária e urgente, um chamado aos brasileiros que verdadeiramente desejam uma pátria de direitos, deveres e oportunidades iguais para todos os cidadãos.

**Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br

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