Apenas 3% do Fundo Amazônia são destinados a organizações indígenas 

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InfoAmazonia analisou dados dos 17 anos de existência do fundo e verificou que apenas 4 projetos, dos 119 aprovados, foram propostos e geridos por associações indígenas.

Por Jullie Pereira

Apenas 3% dos 119 projetos aprovados (4 no total) em 17 anos do Fundo Amazônia foram geridos por organizações indígenas. Criada em 2008, a iniciativa investiu um total de R$ 2,9 bilhões em ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento, com foco nos estados da Amazônia Legal. Desse montante, menos de 2% (R$ 56,7 milhões) foram destinados diretamente a entidades lideradas por povos indígenas.

A principal política orientadora do fundo é o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), cujo objetivo é criar um modelo de preservação ambiental mais efetivo. As organizações indígenas já cumprem esse papel, fortalecendo a proteção dos territórios. Apesar disso, sentem dificuldade em acessar os recursos.

Com base nos dados públicos divulgados pelo Fundo Amazônia, a InfoAmazonia analisou a distribuição dos recursos até 2024. Organizações do terceiro setor tiveram 70 propostas financiadas e receberam a maior parte dos recursos: R$ 1,4 bilhão (48% do total), sendo R$ 760 milhões investidos nos últimos dois anos. No entanto, as associações indígenas receberam apenas 4% desse total destinado à filantropia.

O gestor ambiental Kleber Karipuna, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), afirma que o principal motivo para o baixo acesso das associações aos investimentos está ligado à documentação exigida: “as regras estabelecidas foram muito complexas, a ponto de bloquear o acesso das organizações indígenas”, diz.

Existem cinco etapas a serem cumpridas para ter uma proposta aprovada: solicitação de apoio, pré-avaliação, elegibilidade, análise, aprovação e contratação. Logo na primeira etapa, é necessário preencher um documento de 26 páginas e entregar uma planilha orçamentária para os custos dos produtos, recursos humanos e cronograma de execução. Já a segunda inclui, por exemplo, a apresentação de certidões negativas de irregularidades fiscais e a necessidade de experiência comprovada na gestão de valores altos.

Toya Manchineri, coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), diz que entende que o “Estado tem a política dele”, mas que também precisa “incorporar essas realidades [indígenas], porque, senão, a gente não vai conseguir desenvolver projetos que realmente possam fortalecer as iniciativas dos povos”.

Como uma possível solução, Adriana Ramos, secretária executiva do Instituto Socioambiental (ISA), que foi representante da sociedade civil no Fundo Amazônia por 14 anos, propõe a criação de um mecanismo específico para alcançar as comunidades indígenas. “Como um instrumento financeiro de uma política pública, esse acesso deveria estar dentro, talvez, de um guarda-chuva em que algum outro recurso, fosse do próprio BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], fosse do Poder Público, apoiasse diretamente o fortalecimento dessas instituições”, defende.

A reportagem procurou o BNDES, responsável pela administração do fundo. O banco ressaltou a presença das organizações indígenas, mencionando a entrada do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) no Comitê Orientador do Fundo Amazônia (COFA), que ocorreu em 2023, e a permanência da Coiab. Também explicou que houve ampliação do acesso das organizações indígenas após a chamada pública de projetos para implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI).

Também informou que, nos últimos dois anos, R$147 milhões foram destinados a projetos com foco em povos indígenas. No levantamento da InfoAmazonia, no entanto, foi levado em conta apenas o dinheiro diretamente gerido pelas comunidades, por isso a diferença entre os valores. O banco não respondeu se deve criar novos mecanismos de acesso às organizações, nem explicou a necessidade das medidas burocráticas no processo de seleção. Veja a resposta completa aqui.

Onde estão as organizações indígenas contempladas? 

As quatro organizações indígenas que tiveram projetos aprovados estão localizadas nos estados do Acre, Pará, Mato Grosso e Rondônia. São elas: Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (OPIRJ); Associação Floresta Protegida (AFP), do povo Kayapó; Associação Ashaninka do Rio Amônia (Apiwtxa); e Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé.

Outras entidades indígenas, embora não sejam as principais gestoras dos projetos, são beneficiadas por parcerias com instituições da sociedade civil. A Coiab, por exemplo, colabora em uma iniciativa aprovada pela Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) e outra pela The Nature Conservancy do Brasil (TNC Brasil). Ambos os projetos têm o objetivo de contribuir para a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas.

Dessa forma, mais projetos indígenas passam a ter acesso aos recursos, mas eles defendem a importância do financiamento direto às comunidades. “As parcerias muitas vezes são necessárias e as utilizamos para mostrar aos financiadores que também somos capazes e temos condições de administrar. É uma forma de consolidar nossa presença com eles”, explica Toya Manchineri.

Na tentativa de seguirem suas próprias metodologias, as organizações indígenas também criam, elas mesmas, os seus fundos. O Podaáli – Fundo Indígena da Amazônia Brasileira– foi criado pela Coiab, mas hoje é administrado por uma diretoria independente, que faz a captação de recursos para, depois, destiná-los aos projetos apresentados por coletivos menores de comunidades em todas as Terras Indígenas da Amazônia.

“Com o Podaáli, a gente facilita mais a comunicação com os povos, ensina como construir os projetos, orienta como gastar o recurso. Realmente, torna mais acessível. Foi essa a maneira que a gente encontrou de facilitar para que todos os parentes consigam construir propostas”, explica Toya Manchineri.

Em Roraima, Josimara Baré tenta estruturar o Fundo Rutî dentro do Conselho Indígena de Roraima (CIR), que tem 54 anos de existência, mas que só agora está construindo uma ferramenta própria de captação de recursos. Antes, Josimara dedicou três anos do seu tempo à consolidação do Fundo Indígena do Rio Negro (FIRN), da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN).

“Os fundos indígenas, para mim, significam um grande avanço, uma grande conquista do movimento em relação a esse empoderamento, a essa valorização dos profissionais e às demandas indígenas também. São fundos pensados, elaborados, executados e geridos por indígenas. Então, esse é um grande diferencial. Nós estamos fazendo, nós pensamos, nós criamos, nós estamos colocando em prática aquilo que a gente planejou”, diz.

Para estruturar o Fundo Rutî, Josimara está fazendo uma série de visitas às comunidades indígenas de Roraima, entendendo os projetos que são possíveis, as demandas das populações, os pontos fortes e as capacitações que ainda são necessárias. O objetivo do fundo é garantir a autonomia dos povos e a preservação do território. É a partir desses projetos que os indígenas propõem ações de conservação, seja para impedir o desmatamento, seja para restaurar florestas degradadas.

“Estamos protegendo o território através dessas iniciativas, estamos fazendo ações para o bem-estar, para o bem-viver das pessoas. Então, é outra visão de mundo. Para eles [não indígenas], eu imagino que só veem números, números e números. Para nós, não. A gente vê vida. É muito diferente”, explica.

Investimento fora da sociedade civil

A União, municípios, estados, universidades e instituições internacionais dividiram o restante do valor não destinado à sociedade civil: R$ 1,5 bilhão.

O projeto mais caro foi proposto pela União. O Plano Amas – Amazônia: Segurança e Soberania, do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), recebeu o maior valor desde a criação do fundo. Aprovado em 2023, ele tem um apoio de R$ 318 milhões, com execução até 2027. Seu objetivo é fortalecer autoridades policiais nos nove estados da região, incluindo a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal e a Força Nacional.

O Fundo Amazônia também financia propostas de combate ao desmatamento fora da Amazônia Legal. Ao longo da sua história, isso ocorreu cinco vezes. Os estados da Bahia, Mato Grosso do Sul, Ceará e Paraná receberam, juntos, R$53,7 milhões, usados para a implementação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), política nacional de registro de propriedades rurais. A Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), que reúne países amazônicos, entre eles a Bolívia, Equador, Colômbia, Guiana, Peru, Suriname, Brasil e Venezuela, recebeu R$ 23,6 milhões.

Fortalecimento do terceiro setor

O Fundo Amazônia passou por um baque inédito durante o governo de Jair Bolsonaro. No primeiro ano, em 2019, recebeu o menor recurso desde a sua criação: R$ 39,1 milhões. Depois, ficou suspenso entre 2020 e 2022, com os trabalhos sendo retomados no atual governo Lula. Em 2023, o terceiro setor foi a única categoria a receber recursos, somando R$ 131,9 milhões. Em 2024, parte do dinheiro também foi destinada a outros dois setores: os estados e a União, totalizando R$ 1,1 bilhão.

“Os Estados democráticos são pensados para ter uma atuação conjunta. Nos países mais desenvolvidos, a sociedade civil é mais ativista, no sentido de cobrar do Estado, mais do que executar esse trabalho. No Brasil, temos outro contexto. Quando falamos de áreas mais remotas e de temáticas como meio ambiente, não há políticas estruturantes e universalizantes pensadas para essas regiões. Então, de fato, a própria sociedade precisa se organizar para que isso aconteça, para reivindicar”, explica Ramos.

Entre as entidades que mais tiveram acesso estão a Conservation International do Brasil (CI-Brasil), com R$ 198,2 milhões, o Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam), com R$ 168,8 milhões, e a Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), com R$ 150 milhões — todas com sede no Rio de Janeiro.

Esta reportagem foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o apoio do Instituto Serrapilheira.

Texto: Jullie Pereira
Análise de dados: Renata Hirota
Visualização de dados: Carolina Passos
Edição: Carolina Dantas
Direção editorial: Juliana Mori

Crédito: Jullie Pereira*

*a autorização para republicação do conteúdo se dá mediante publicação na íntegra, com crédito e redirecionamento (link) para a publicação original. O InfoAmazonia não se responsabiliza por alterações no conteúdo feitas por terceiros.

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