Lourenço Braga, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas
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Amanhecera e, como fazia todos os dias, sentou-se ao lado direito da janela para conversar com sua solidão. Nem sabe quanto tempo repete o gesto, da forma como nem recorda desde quando admira a mesma paisagem, às vezes molhada por chuva de que o velho telhado o defende, às vezes aquecida pelo sol companheiro, outras tantas escurecida pela noite chegante, mas o fato é que as recordações se repetem como os dias e há lembranças que o divertem, provocando sorrisos e até gargalhadas, mas outras há que o entristecem destacando injustiças e dele cobrando o que deixou de fazer por medo, incompreensão ou outro qualquer sentimento menor.
No peito, a agora doce saudade da companheira que com ele caminhou por tempo longo, que construiu, que ensinou, que dividiu os melhores momentos da vida, chamada para outro plano do mundo, onde há de sorrir e brilhar como aqui.
Era assim havia muito. Chegando o cair da tarde, a cadeira calmamente virada para o lado esquerdo da janela amiga, de sorte a permitir-lhe o deslumbramento do ocaso do sol, que sempre parece gritar anunciando, mais que a chegada de nova luz, o compromisso de se fazer presente, e forte, mesmo que não visível para todos, vencida a madrugada.
Aquele hoje não era apenas mais um sucessor de um ontem que inscrevera em seu passado, nem mesmo era o prenúncio de amanhã e de depois que tanto pedia a Deus que se repetisse, por amor à vida.
Não! O brilho do sol fazia-se em cores cintilantes em sua alma e era como se os raios que transpunham a janela amiga invadissem seu espírito em festa nova. Era seu aniversário e agora já não mais cultivava antigo hábito de desconversar sobre a idade que os cabelos brancos e as marcas no rosto não permitiam esconder. Ergueu os olhos para o azul do céu cúmplice e em prece silenciosa e contrita agradeceu ao Deus de sempre por festejar com ele o início da nona década da vida.
Não sabia se era impressão, ou simples desejo que se confundia com sonho, mas o perfume das flores que lhe invadia o peito não era igual ao de todos os dias, nem mesmo dos 89 que já experimentara em festa semelhante, justo porque em orações mudas muitas vezes pedira ao Pai que lhe permitisse ultrapassar a barreira da década que antecede o século, por tanto que ama a vida.
De repente, um belo rouxinol pousou na grade imposta pela insegurança dos tempos de agora e seu canto parece ter sido diferente, como a também festejar a data nova. Logo além, em flor que ornava de beleza o jardim que ele próprio plantara, seu orgulho, e de que cuidava com a dedicação dos que sabem amar, sem que isso importasse traição qualquer à sua cadeira, seu lugar no mundo, foi como se orquestrassem música suave e única de congraçamento pelo tempo que ali se iniciava. Quase nem respirou, ao ouvir, para não produzir som qualquer que pudesse tisnar a magia de encanto daquele instante. E lágrimas, acostumadas a gritar saudades e a umedecer flores plantadas ou brotadas com o tempo, também chegaram ao encontro.
Bom, a repetir-se o que se dera em anos anteriores, os últimos tantos, pelo menos, não estará somente na companhia de pássaros, de flores e de lágrimas nesse dia, porque há filhos sobrevivos, netos e até bisnetos que costumam vir, e a cadeira sentir-se-á aliviada, de quando em vez, para abraços que se farão de pé, mesmo curtos, “para não cansá-lo”, ainda que o discurso possa não corresponder à prática da preocupação.
A cada chegada, em cada abraço um suspiro de alegria incontida e uma prece muda de agradecimento ao Deus de sempre. O regozijo do beijo na fronte e o sorriso que até podem ter significados diferentes, a tradicional pergunta pelo estado de saúde e, afinal, a frase que parece ensaiada, combinada, imaginada em conjunto, embora antiga e até cruel: “o senhor está bem”, põe fim ao diálogo da visita. E há os que chegam mais tarde e, com celulares do tempo de agora, fazem questão de filmar o cântico e os aplausos do “parabéns a você” com beijos na fronte, quase obséquios.
E também se vão, porque compromissos outros há fora da maldita grade, a física que isola corpos na janela, a imaginária que separa corações, que embota desejos, que obriga à compreensão de que o passado não se restabelece e o futuro, que tanto se deve agradecer pela permissão concedida, não se fará igual aos sonhos que uma grade não física parece esconder a título de preservar.
Longo dia, de encontros e desencontros, de esperas e de surpresas, de promessas não confirmadas, de lembranças e de crenças, e é hora de retornar à cadeira que, muda, espera para ouvir lamentos do que não foi, para escutar alegrias, para fazer-se confidente de sonhos novos, para guardar esperanças e para esperar que o sol de amanhã cintile com a força do Amor, porque será prenúncio do Natal.
Afinal, a 25, bem mais que noventa os anos contados aqui, o aniversário será de quem plantou a esperança e morreu pela paz.