DEDILHANDO A VIDA

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Lourenço Braga, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas

 lourencodossantospereirabraga@hotmail.com

Funcionária pública federal concursada,  teve condições de dividir com o marido –  um professor do curso ginasial, apaixonado por literatura, que ensinava, e por música que entoava no violão que o acompanhara em serenatas, inclusive para ela própria – as despesas de manutenção da casa que, a muito custo, conseguiram comprar em bairro de classe média, além de com a formação do único filho que resultou de seu casamento.  Orgulhavam-se ambos, e muito agradeciam a Deus, de haver podido dar ao filho tão querido boa escola particular, desde o maternal até à faculdade, essa em cuja formatura viu-se obrigada a representar o casal que se desfizera com a passagem de seu amado para outro plano da vida, poucos dias antes da festa.

A morte brusca do marido, no vigor da juventude de seus cinquenta e poucos anos, deu à sua vida norte novo e nela plantou a solidão que não conhecia desde quando saiu da casa dos pais para constituir a própria família. Casara-se jovem e logo procriara, e a convivência no matrimônio sempre fora saudável, ensinando a aprender, a dividir, a doar, a receber, a respeitar, e seu mundo fizera-se feliz entre o trabalho, de que muito gostava, e a vida familiar onde se sentia amada e plena.

Não se tornara dependente do marido, como até se dera com algumas de suas amigas e colegas, mesmo porque não era esse o ambiente em que ele, um artista, concebia e defendia o amor. Mas exatamente esse sentimento fez forte a dor da saudade e plantou a falta de perspectiva para a vida.

A viuvez foi fonte de aproximação bem maior do filho que lhe restara de tão bela relação amorosa, mas também tinha consciência de que não devia esperar que ele, mesmo sempre carinhoso, preenchesse a lacuna que levara  a solidão para sua vida. Afinal, ainda que residindo na casa em que nascera, agora estava casado e havia algum tempo que cuidava de bela filha que chegara  para embelezar a vida. E isso lhe deu alma nova. Era como se tivesse renascido e acompanhar os momentos quase todos, da primeira fralda aos passos iniciais, tudo fazia parte de uma beleza que se havia perdido com o  silêncio do violão.

Em todas as festas, o  beijo primeiro era o da vovó e a alegria explodia em seu coração que novamente se fizera menino. No Natal, no Ano Novo, na Páscoa, sempre havia um mimo com que o filho fazia brilhar o abraço de afeto da netinha a lhe aconchegar a fronte. E os instantes de solidão ficavam resguardados para o contato com os lençóis que haviam conhecido o amor maior.

Era doce sua relação com a neta que crescia em tamanho físico e em beleza e havia certa cumplicidade no que dividiam como extremos do tempo.

Estranhou no dia em que o filho, formado em Direito e com cargo que conquistara com mérito, tentou convencê-la da necessidade de transferir para seu nome a propriedade da casa que ela comprara com o sacrifício próprio e de seu artista de tantas saudades, mas ele lhe  apresentou argumentos que nem bem compreendia. Afinal, se era filho único a ele se transferiria o “patrimônio”, que nem era grande, depois que ela partisse para as serenatas  nas estrelas e os bailes ornados por anjos de trombetas harmônicas e harpas afinadas.

Resistiu, foi teimosa,  e a negativa forte do primeiro momento transformou-se em pedidos de adiamento para “pensar melhor”, para avaliar, certo que com os poucos com quem conversou de todos ouviu a confirmação do que dizia. As investidas se repetiam,  chegavam a toldar a alegria dos encontros que deveriam ser festivos, e até a neta começava a dar sinais tímidos de descontentamento. Resolveu ceder e o almoço do aniversário do filho foi festa com a assinatura dos documentos que ele providenciara, tudo gravado, em alegria, nos celulares dos que compunham a família além dela.

Terminava junho e ela assistia ao boi bumbá de sua preferência, vestida de azul, na televisão que não mais lhe pertencia, com o coração sangrando em vermelho. De lá, onde o espetáculo é inenarrável, recebeu mensagem da neta que lhe mandava um beijo e uma foto ao lado de quem, a julgar pelos sorrisos, podia ser seu namoradinho. No frio da tela do celular,  o amor agora também distante.

Há três anos, durante a desastrosa, cruel e inesquecível pandemia, reservaram-na em  seu quarto, isolada, proibida praticamente de viver, decidindo  sobre o que lhe  era ou não possível, e infundiram o medo, a insegurança, a dependência, o não-ser, o dia que não amanhece, a noite que é perene na alma, e tudo faziam com o argumento do amor. Depois, convenceram-na de que, em sua idade, melhor seria recolher-se em uma casa de repouso, onde há pessoas iguais (viúvas, tristes, sofridas, sem rumo, amedrontadas, sem perspectiva de amanhã… )  que afinal eles, o filho, a nora e a neta, podiam terminar por contaminá-la, eis que precisavam sair de casa (que fora dela por tento tempo) para a vida.

Os proventos de sua aposentadoria e a pensão previdenciária  que lhe deixou o artista tão amado, mesmo não ricos, estão hoje comprometidos com o pagamento dos estudos da neta que já nem vê, há tempo, e é  daí que retiram o necessário para garantir um quartinho individual, com tv de 14 polegadas, além da promessa de pagamento da conta de seu celular. Precisava ser assim? Nem sabe responder, mas não duvida que é.

 Agora, no nascer de um novo ano – efeméride que sempre festejou com alegria de gratidão e crença de recomeço – estava só, terminada a festinha protocolar que antecede a ida para a vida das senhoras que lhe proporcionam a alegria de estar ali com outros que nem tanto conhece, recebeu mensagem singular no aparelho que um dia foi sede de alegrias registradas por escrito, em voz ou em foto, dizendo “um beijo, mãe, feliz ano novo”.

Olhou o retrato na moldura sobre a cômoda, levou o violão ao peito, ouviu  e chorou  sonhos que já não são e, terço na mão, negou-se a responder, porque seu coração não aceita a frieza de um beijo virtual. Não na noite que sempre lhe foi de esperança.

Maldito celular!

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Redação
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