A pandemia do SARS-CoV-2, da família coronavírus, nos aproximou das memórias de surtos anteriores. As comparações demandam cautela, mas as semelhanças com a gripe espanhola, em 1918, fez circular uma imagem que chamou atenção dos membros do Laboratório de Pesquisa em Arquivologia, História e Patrimônio da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Trata-se de uma imagem com o título “Universidade de Manáos – Encerramento dos cursos” e que em seu interior há a informação do fechamento das atividades da Universidade “… a fim de evitar a propagação da influenza hespanhola”, que ficou popularmente conhecida como “gripe espanhola”.
O arquivo, sem nenhuma referência ou fonte, instigou o professor da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC/Ufam), e coordenador do Laboratório de Pesquisa em Arquivologia, História e Patrimônio, Leandro Coelho de Aguiar, a buscar veracidade do fato. “Como professor da Ufam, fiquei curioso com a imagem compartilhada nas redes sociais sobre o fechamento da Universidade de Manáos em 1917, situação que ocorreu novamente, 103 anos depois, por motivo parecido, agora pela covid-19. A curiosidade aumentou tendo em vista que a publicação possuía características de um jornal de época, o que remete a um tipo de fontes habituais nos projetos de pesquisa que realizamos dentro do Laboratório de Pesquisa em Arquivologia, História e Patrimônio. Assim, sabia onde procurar e que poderia tentar encontrar tal reportagem na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Brasil, repositório com milhares de imagens digitalizadas de periódicos publicados no Brasil desde 1840”, explicou.
O processo de busca
Ao colocar no campo de busca do próprio repositório ‘Universidade de Manáos’ e ‘Encerramento dos cursos’, o docente encontrou, 17 resultados, em quatro jornais diferentes. “Após a leitura de todos os resultados, descobrimos que a reportagem foi publicada no ‘A Capital’, no dia 31 de outubro de 1918, jornal do próprio estado do Amazonas. Descobrimos também que no mesmo dia, outro jornal regional também noticiou tal fechamento, o ‘Imparcial’. Na capa do ‘A capital’, podemos observar muitas notícias que permeiam o ambiente da sociedade amazonense, acontecimentos no mundo, como a situação dos conflitos na Europa da primeira guerra mundial, que se encerraria dias depois, em 11 de novembro de 1918, e o cotidiano do Estado, como a aproximação das eleições para a Assembleia Legislativa, assim como notícias da administração pública, fatos do cotidiano, como crimes, a situação do interior do Amazonas e também uma crônica com os aniversariantes do dia e até bodas de casamento”, acrescentou.
O fato é que há no exemplar uma reportagem, em um pequeno espaço, acerca do fechamento das atividades da Universidade de Manáos, localizada no final da página e próxima de uma propaganda de tratamento da gripe influenza espanhola. O professor explica que os objetivos da suspensão de atividades, que, de acordo com as medidas preventivas aconselhadas pelos poderes públicos da época, visavam evitar a propagação da influenza espanhola.
“Cabe ressaltar também que, mesmo com o encerramento das aulas de “todos os cursos da Universidade”, assim como “os exames dos preparatórios”, a Universidade manteve algumas de suas atividades em funcionamento, sendo o caso da Secretaria Geral da Universidade. Uma característica interessante, à época, parece que os cursos eram pagos, já que os alunos foram dispensados dos “pagamentos relativos ao mez de novembro”. (A Capital, 1918)”, disse.
O docente lembrou ainda que não foi encontrado nenhum arquivo sobre o retorno das atividades e que os achados são relevantes para a construção da memória coletiva da Universidade. “Não conseguimos identificar nenhuma notícia sobre o período de duração dessa interrupção das atividades, nem quando voltaram ao normal, e nem como foi esse “novo normal”, mas, assim como em 1918, hoje também a Universidade se mostrou responsável com seu papel social, ao entender o momento e zelar pela sua comunidade, assim como por toda a sociedade amazonense. A importância desse material, e desse tipo de pesquisa, vem em acordo, justamente, com a criação dessa história e memória institucional, o reconhecimento social, e a própria identidade da sociedade com a Ufam. Reconhecer momentos históricos ajuda, justamente, a enaltecer a Instituição, principalmente em momentos difíceis, como foi em 1918, com a gripe “espanhola” e hj, com a covid 19”, finalizou.
A Gripe Espanhola
Sobre o tema, o doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Ufam (PPGH), discente Julio Santos da Silva, explicou que a gripe espanhola vitimou pessoas em vários países e na cidade de Manaus, a doença chegou em outubro de 1918, dando origem a um aparato para combater a doença com as tecnologias disponíveis no seu tempo. “Adotando medidas como evitar aglomerações de pessoas e improvisando hospitais e postos de atendimentos em espaços públicos e privados, as autoridades administraram variadas medidas com o objetivo de conter o elevado número de mortes causadas pela epidemia, contando, inclusive, com a convivência de práticas de cura baseadas em plantas e ervas com a medicina oficial dos doutores diplomados. A instabilidade social foi agravada à época, a cidade passava por uma grave crise em detrimento do declínio da economia gomífera”, destacou.
As informações demonstram a situação que a cidade se encontrava. Não só a população, mas também instituições públicas e entidades de classe estabelecidas na cidade uniram esforços no combate à doença, inclusive da Universidade de Manáos. Guardada as devidas proporções e considerando os contextos distintos, o doutorando apontou semelhanças entre as duas situações.
“Tanto a gripe espanhola como a covid-19 paralisaram quase todas as atividades da cidade de Manaus. Em 1918, pela grande quantidade de mortes, as pessoas se isolaram em casa com medo da morte. Não existiu uma cura para a espanhola, usavam os medicamentos para tratar os sintomas (febre alta, dor de cabeça, e falência do sistema respiratório). Apareceu todo o tipo de medicamento, desde a água inglesa até chás para tratamento. As plantas regionais foram muito usadas pela população. Foram criados vários postos de atendimento na cidade. Inclusive, o Teatro Amazonas virou uma enfermeira. A cidade se mobilizou para o enfrentamento da pandemia. O próprio governador do estado na época, Pedro Alcântara Bacelar, que era médico, tratou pacientes de gripe espanhola. Com ele toda a elite médica: Alfredo da Matta, Miranda Leão, Ayres de Almeida, Fulgêncio Vidal e outros. O próprio reitor da Universidade Livre de Manáos, Astrolabio Passos, também estava na linha de frente. Outra semelhança com o que estamos vivendo foi que em 1918 também houve a abertura de valas coletivas para suprir a demanda de mortes”, lamentou.
Universidade de Manáos
A Universidade de Manáos faz parte da história da Universidade Federal do Amazonas. Em 1909 foi criada a Escola Universitária Livre de Manáos, que em 1913 passa a se chamar Universidade de Manáos, e que funcionou até 1926, quando fechou, passando a funcionar apenas unidades isoladas de ensino superior mantidas pelo Estado, foram elas, as Faculdades de Direito, de Odontologia e de Agronomia. Em 1962 foi criada, pelo governo João Goulart, a Universidade do Amazonas, onde, em 1964, seu Conselho Diretor reconheceu como sucessora legítima da Escola Universitária Livre de Manáos, passando assim a ser a data de comemoração da instalação da Universidade do Amazonas.